Uma história inacabada de um suicídio na metade. MOREIRA, Isa Lorena vergasta. Ficção, Literatura.

Parte 4

O velho me dava comida e livros. Em troca, eu limpava toda casa, lavava suas roupas e muitas vezes, pegava ele me espiando pelas frestas. Mais de uma vez me insinuei, até me masturbei na sala uma vez, enquanto ele servia o nosso jantar. Mas ele não fez nada, fingia que não via, nunca encostou um dedo em mim. Até que desisti. Nunca entendi porque havia me escolhido, se não queria me comer. Mas isso já não me importa mais, agora. Nada me importa mais, agora. Eu só quero ir embora dessa vida mesmo, sem culpa, sem sentimentalismos baratos. Mas sempre achei fantástica essa idéia de escrever cartas de suicídio. Depois botar numa garrafa e jogar no mar... Ou mesmo mandar para um endereço qualquer da lista telefônica, uma coisa louca assim. Enquanto não decido o que fazer, vou escrevendo.

O Velho nunca me disse a idade. Não conversávamos. Uma vez descobri em uma gaveta, cinco identidades diferentes e entendi um pouco, a solidão que havia alí. Talvez nem ele soubesse mais quem era. Nunca o vi com nenhuma mulher; não tinha fotografias, cartas, vestígios. Era só ele e a casa.
Um dia resolvi sair de casa pra arranjar um emprego. Tinha 20 anos já. Disse ao velho o que ia fazer e ele deu de ombros. No dia seguinte havia ao meu lado, na cama, uma roupa nova, num embrulho. Todas as suas atitudes eram indescritíveis, já não me atormentavam. Lavei o corpo e me vesti; ele já não estava mais em casa. Na geladeira, um bilhete: “Bom dia e boa sorte, pequena”. Era como me chamava, quando estávamos a sóis.
Andei muito aquele dia, percorri ruas e lojas em busca de algo a fazer. Por fim, numa lanchonete, perto de casa, um senhor mandou voltar no outro dia, bem cedo, ele disse, depois de fazer inúmeras perguntas sobre minhas procedências. Depois de três meses, fui demitida. O patrão descobriu que eu roubava alguns temperos da cozinha. De lá pra cá já passei por tantas outras lanchonetes que até perdi a conta. Faz um ano que não arranjo nada...
Engraçado, faz três dias que escrevo essa carta de suicídio. E hoje, pela primeira vez em muito tempo, questionei minha idéia. Não a de me matar, a de continuar essa carta, mesmo...

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