Uma história inacabada de um suicídio na metade. MOREIRA, Isa Lorena vergasta. Ficção, Literatura.

Parte 3

Imagine: eu queria escrever apenas uma carta de despedida e nem isso sou capaz. Quero contar quem eu sou. Sei lá, vai que um dia vira novela! É... Eu sei que nem tem como acontecer isso. Mas, são 29 anos bem intensos, os meus. Já que vou embora e ninguém me conhece nesse mundo de verdade, então é melhor escrever mesmo. Vamos lá.
A maior parte dos trabalhos que arranjei foi de garçonete. Mas sempre me pegava com os fregueses, que passavam do limite da ousadia. Eu não sou muito alta, tenho um corpo bonito, mas não gosto das minhas pernas; acho elas finas demais pra todo o resto, principalmente comparada à minha bunda, que é meio grande.

Depois que minha mãe morreu, morei uns dois anos com minha avó, até ela morrer também, dormindo. Ninguém entendeu porque eu não chorei quando a velha morreu, mas eu não sentia nada mesmo por ela. Eu apanhava muito. De cinto, de madeira, de tudo que ela via pela frente e ia me atacando quando tava nervosa. O dinheiro que minha mãe deixou, serviu para estudar em escola particular até os 15 anos. Depois já não queria mais ir pra escola, só gostava de ler os livros que escolhia. Eu passava os dias em casa, trancada, sozinha, depois que minha avó morreu. Quase não tomava banho, quase não comia, só ficava lendo, lendo, fingindo que as histórias que lia era minha própria vida.
Um dia aconteceu de um velho aparecer por lá, guiado pelos visinhos, e dizendo que precisava de alguém pra trabalhar na casa dele, que ele também vivia sozinho, queria ajuda. No começo eu recusei, mas ele voltava todos os dias pra fazer a mesma proposta. Até o dia que me injuriei com aquilo e esperei ele em casa nua, deitada de perna aberta na cama. Ele entrou e ficou me olhando, com a porta fechada atrás de si. Eu chamei, disse a ele que sabia o que queria; que ele ia ter sem pagar nada, depois ia embora, me deixar em paz, já não agüentava mais aquele homem todo dia atrapalhando minhas leituras. Pois ele veio andando devagar, chegou perto de mim, fechou minhas pernas e sentou na cama ao meu lado.
Nunca tinha sido tão humilhada. Ele pediu mais uma vez que fosse morar com ele. Disse que eu lembrava a filha dele, que tinha sumido quando era pequena ainda; ele não queria me comer. Estava indignada, não sabia o que fazer. Mas disse pela primeira vez que ia pensar. Pedi que deixasse escrito sobre a mesa o endereço e não aparecesse mais, até eu decidir o que fazer. Ele o fez. Naquele dia, tudo que vivi passou na minha cabeça, as brincadeiras de infância, eu, excitada, olhando os meninos jogar bola, o meu padrasto, que me fazia sentar no seu colo quando minha mãe não estava em casa. Às vezes eu sentava sem nem ele mandar, não sabia exatamente o que sentia, mas era gostoso e sempre ficava com sono depois. Ele cantava para mim e eu o adorava até o dia que ele me fez sangrar por três dias seguidos. Nunca contei pra minha mãe. Não sei se ela ia acreditar em mim...
Dei a resposta ao velho seis dias depois, porque ele sumiu como prometeu e eu, sem entender muito bem, senti falta de suas visitas diárias. Era como se na hora em que ele me importunava todos os dias, eu sentisse um vazio... Vai entender as ambigüidades humanas. O fato é que fui até lá. O velho morava numa casa bonita, grande até, a poucos quarteirões da minha. Parei, vacilei por um instante, pensei em voltar. Respirei fundo e toquei a campainha: aquele som estridente rasgou minha alma. Ele abriu a porta e antes de dizer qualquer coisa, segurou minha mão e me pôs pra dentro. Eu sentia um misto de tesão e raiva. Não queria estar alí, mas já não tinha outra opção.
Ele sumiu casa adentro e eu alí, parada, olhei as infiltrações, respirei toda poeira, observei o sofá, verde, descascado em um dos braços, me imaginei alí deitada, me esfregando. Olhei a mesa grande, de seis lugares, as cadeiras forradas de plástico e um cinzeiro numa bancada, com restos de cigarros mal fumados. Tudo estava muito sujo e até fedia. Mas naquela meia luz uma esperança me veio, bêbada, de que aquele era o lugar perfeito para esconder minhas angústias.


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